Administração de patrimónios particulares fica mais desafiante. Novas regras europeias antielisão pressionam planeamento fiscal dos ricos

No início do mês, Portugal seguiu as pegadas europeias e adotou novas regras contra o planeamento fiscal agressivo. O alcance das mudanças está a ser digerido, mas avulta já uma que está a deixar a indústria financeira e da consultoria em alerta: a forma como as fortunas familiares têm sido geridas poderá ficar em xeque.

Entre quem tem grandes patrimónios financeiros é comum pegar nas carteiras de participações e parqueá-las numa sociedade estrangeira, numa jurisdição que ofereça um IRC mais baixo, face ao IRS que se pagaria em Portugal sobre os rendimentos das aplicações. Malta, Holanda e Bélgica são alguns dos países que oferecem taxas de tributação atrativas, ou que até dão isenção de imposto a quem reinvista os rendimentos.

Ora, uma das regras da nova diretiva antielisão (ATAD no acrónimo inglês) vem dizer que, sempre que “o imposto efetivamente pago” no estrangeiro seja inferior a 50% do imposto que seria pago cá em Portugal, então esses rendimentos têm de ser cá tributados. Esta formulação aperta a malha (até aqui exigia-se que a taxa nominal não fosse inferior a 60% da taxa do IRC) e, conjugada com regras mais restritas sobre a exigência de que as sociedades tenham substância económica, poderá afetar muitas das sociedades de gestão de património.

“As implicações são enormes porque há imensa gente que tem sociedades patrimoniais que poderão vir a ser postas em causa”, admite João Magalhães Ramalho, sócio da PLMJ, e não está só. Para Carlos Loureiro e Luís Filipe Bernardo, da Deloitte, o risco associado “é considerável”, pois acreditam que vai abrandar “a constituição de veículos societários dedicados a deter e gerir patrimónios familiares” e até, surgir, “uma reorganização” da realidade atual. O advogado Ricardo da Palma Borges concorda — “nas holdings não altera muito, mas para os veículos de gestão patrimonial a coisa pode piar mais fino” — e dá o exemplo de Malta, com uma taxa nominal de IRC de 35% mas que, na prática, acaba por ter um imposto efetivo de 5%. “Antes escapavam à regra CFC [Controlled Foreign Corporations, que regula a forma como os rendimentos no exterior são declarados] mas, de futuro, poderá obrigar à imputação dos rendimentos a Portugal.”

“A reorganização do património está neste momento a ser discutido em toda a Europa”, diz Magalhães Ramalho e “atrás destas normas poderá vir uma pequena revolução na indústria bancária e financeira”. O advogado antecipa que os patrimónios mais pequenos possam vir a alterar o seu perfil de investimento, nomeadamente “migrando para estruturas grossistas”, como os fundos de investimento ou unit-links (contratos de seguro ligados a fundos de investimento), ao passo que os mais ricos podem optar por pagar para se adaptarem aos novos requisitos.

Quem também tem de se adequar são os residentes não habituais (RNH), adverte Palma Borges. Além de não pagarem IRS (os reformados) ou terem uma taxa reduzida de IRS (trabalhadores), os RNH também estão isentos de IRS sobre os rendimentos de capitais que sejam auferidos no estrangeiro. Só que “a isenção sobre rendimentos de fonte estrangeira não os isenta da regra CFC”. Quer isto dizer que “se os rendimentos forem distribuídos no estrangeiro, não são tributados”. Mas se não o forem “já poderão ser tributados em Portugal”. Em suma, “tenho de certificar-me de que o dividendo chega mesmo cá” para que ele mantenha a isenção de IRS.

O OLHAR DO FISCO

As novas regras inserem-se numa estratégia internacional de aperto do cerco ao planeamento fiscal agressivo e à erosão das bases tributáveis, mas, sendo recentes, é preciso esperar para ver qual a sua aplicação prática. E há receios que podem confirmar-se ou serem afastados em função daquilo que for a interpretação das autoridades fiscais nacionais e da atuação em termos de fiscalização. “Como as implicações das novas regras se vão centrar, principalmente, no reforço dos requisitos de substância, poderá verificar-se uma maior ação por parte das administrações tributárias em exigir prova desses requisitos”, antecipa Rogério Fernandes Ferreira, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.

“É preciso densificar o que se entende por substância económica” e o que são “razões económicas válidas”, sob pena de se continuar a alimentar um enorme contencioso, aponta Magalhães Ramalho. Porque “ninguém anda a montar este tipo de empresas para perder dinheiro”. “Um dos pontos a analisar será se a estruturação da atividade assenta em razões económicas válidas, ou seja, que não tenham uma natureza predominantemente fiscal”, clarificam os especialistas em tributação internacional da EY, Luís Marques e Miguel Puim, que defendem que a existência de um determinado aspeto fiscal benéfico “não implica, por si só, que a operação tenha sido orientada por motivos fiscais”.

É que “os recursos utilizados por uma sociedade dependerão em grande medida da atividade prosseguida pela mesma. Pode até suceder-se que uma entidade subcontrate integralmente a gestão dos seus ativos, revelando uma estrutura sem vínculos laborais, equipamentos ou até instalações”, sustentam Carlos Loureiro e Luís Filipe Bernardo. “Discutir a substância de uma sociedade holding pode ser um desafio”, frisam.

Outro exemplo: as novas regras obrigam os contribuintes a comparar o IRC que pagam lá fora com o imposto que seria pago cá dentro. “Mas todo este exercício é dificílimo, está longe de ser imediato”, acrescenta Palma Borges.

Já Fernandes Ferreira deixa o alerta de que a luta contra a fraude e evasão fiscal deve ter em conta “as liberdades fundamentais da União Europeia, nomeadamente, com a livre circulação de capitais, não podemos tornar as transações transfronteiriças tão onerosas e complexas que a sua realização seja colocada em causa”.

“A desconfiança relativamente a operações de carácter transfronteiriço veio para ficar. Nem as operações conduzidas com entidades de outros estados-membros estão a salvo de escrutínio”, concluem dos fiscalistas da Deloitte.

Além das regras CFC e do aperto da norma geral antiabuso, a nova diretiva verteu também na legislação nacional alterações ao nível da dedução dos gastos de financiamento e antecipa-se que pode haver um acréscimo dos juros não dedutíveis, com o consequente aumento da tributação em sede de IRC. Além disso, muda o regime de tributação à saída quando há a transferência da sede para o estrangeiro.

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